quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Palavra que revela!


Poema
A Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna
Sérgio de Castro Pinto

eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o eu poeta.

um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.

não um poema
com azul
da blu-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.

um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.

este será o seu ofício:
ser lâmina penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.

repudiu o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.

da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.

da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
de cimento, areia e cal.

o meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto me cansa
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.

meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
patidas ao meio.

meu poema não é istmo,
isto ou aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.

In: PINTO, Sérgio de Castro. O cristal dos verões, poemas escolhidos. São Paulo: Escrituras, 2007.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Para refletir!

Os estatutos do homem
Thiago de Mello

Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II: Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III: Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV: Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V: Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI: Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII: Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII: Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX: Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI: Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII: Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII: Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
"Faz escuro, mas eu canto", em Vento geral.

sábado, 9 de outubro de 2010

Condição humana?!


Retirantes, de Cândido Portinari
Da humana condição
Mário Quintana

Custa ao rico a entrar no Céu.
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra...

sábado, 2 de outubro de 2010

À minha filha...


Canção do vento e da minha vida
Manuel Bandeira

O vento varria as folhas,
o vento varria os frutos,
o vento varria as flores...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
o vento varria as músicas,
o vento varria os aromas...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
e varria as amizades...
o vento varria as mulheres.

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.