quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Então é Natal!


Como armar um presépio
José Paulo Paes

Pegar uma paisagem qualquer
cortar todas as árvores e transformá-las em papel de imprensa
enviar para o matadouro mais próximo todos os animais
retirar da terra o petróleo ferro urânio que possa
eventualmente conter e fabricar carros tanques aviões
mísseis nucleares cujos morticínios hão de ser noticiados com destaque
despejar os detritos industriais nos rios e lagos
exterminar com herbicida ou napalm os últimos traços de vegetação
evacuar a população sobrevivente para as fábricas e cortiços da cidade
depois de reduzir a paisagem à medida do homem
erguer um estábulo com restos de madeira cobri-lo de
chapas enferrujadas e esperar
esperar que algum boi doente algum burro fugido
algum carneiro sem dono venha nele esconder-se
esperar que venha ajoelhar-se diante dele algum velho
pastor que ainda acredite no milagre
esperar esperar
quem sabe um dia não nasce ali uma criança e a vida recomeça?

domingo, 5 de dezembro de 2010

Mais uma página...


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:

Ana Cristina César

terça-feira, 23 de novembro de 2010

"Prefiro ser essa metamorfose ambulante..."


Metamorfoses
José Paulo Paes

Sou o que sou:
o silêncio após o mas
e o ou

fui que fui:
um ruído entre
o constrói e o rui.

fosse o que fosse:
a ponte (que pena!)
quebrou-se

ser o que seria:
já crespúsculo mal
começa dia?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A poesia em pequenos versos II


METAMORFOSE, Salvador Dali

A metamorfose (14)
Adriano Cabral

O inseto acordou apavorado:
No pesadelo havia sonhado
Que era um homem domesticado.

Persona (31)
Adriano Cabral


Uma máscara a cada dia
Viver sem máscaras
É também outra fantasia.




quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Palavra que revela!


Poema
A Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna
Sérgio de Castro Pinto

eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o eu poeta.

um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.

não um poema
com azul
da blu-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.

um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.

este será o seu ofício:
ser lâmina penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.

repudiu o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.

da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.

da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
de cimento, areia e cal.

o meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto me cansa
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.

meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
patidas ao meio.

meu poema não é istmo,
isto ou aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.

In: PINTO, Sérgio de Castro. O cristal dos verões, poemas escolhidos. São Paulo: Escrituras, 2007.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Para refletir!

Os estatutos do homem
Thiago de Mello

Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II: Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III: Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV: Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V: Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI: Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII: Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII: Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX: Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI: Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII: Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII: Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
"Faz escuro, mas eu canto", em Vento geral.

sábado, 9 de outubro de 2010

Condição humana?!


Retirantes, de Cândido Portinari
Da humana condição
Mário Quintana

Custa ao rico a entrar no Céu.
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra...

sábado, 2 de outubro de 2010

À minha filha...


Canção do vento e da minha vida
Manuel Bandeira

O vento varria as folhas,
o vento varria os frutos,
o vento varria as flores...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
o vento varria as músicas,
o vento varria os aromas...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
e varria as amizades...
o vento varria as mulheres.

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Quem sou eu?!

"Auto-retrato como artista, 1888." Van Gogh
Eu
Florbela Espanca

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a cruscificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

sábado, 11 de setembro de 2010

Política e politicagem...


O analfabeto político
Bertolt Brecht


O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala;
nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão,
do peixe,
da farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro
que se orgulha e estufa o peito,
dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política,
nasce a prostituta,
o menor abandonado, o assaltante
e o pior de todos os bandidos:
que é o político vigarista,
pilantra, o corrupto
e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Simplesmente amar...

Amar
Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesmo de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um pouco da poesia negra brasileira

Imagem extraída de: http://www.uniblog.com.br/nacoeseaculturadacor/

Ferro
Cuti (Luiz Silva)

Primeiro o ferro marca
a violência nas costas
Depois o ferro alisa
a vergonha nos cabelos
Na verdade o que se precisa
é jogar o ferro fora
e quebrar todos os elos
dessa corrente
de desesperos

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ouvindo poesias de Mário Quintana



QUINTANARES
Vídeo extraído do DVD "Quintana: Anjo e Poeta"
Direção geral: Gilberto Perin
Gerência de produção: Alice Urbim
Coordenação de produção: Zanza Pereira
Diretor responsável: Raul Costa Jr.
Realização: RBSN
Vale à pena conferir todo o DVD, que contém entrevistas, relatos, poemas, biografia, tudo isso com uma produção de emocionar.

sábado, 14 de agosto de 2010

Lua do céu, Lua do mar

Ismália
Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

segunda-feira, 2 de agosto de 2010


Solidão
Mia Couto

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Uma eterna contradição...


Traduzir-se
Ferreira Gullar

Uma parte demim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte demim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Para sempre...


Soneto do Amor Total
Vinícius de Moraes

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude
.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Amor e morte!


Idealismo
Augusto dos Anjos

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibrita e da hetaíra,
de Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

sábado, 3 de julho de 2010

Ah! Pasárgada...

Imagem de Tom Sierak
Vou-me Embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Para ouvir o poema, por Manuel Bandeira http://www.youtube.com/watch?v=cJzFs24HPPc

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Saudades!!!

(São João, Pintura de Di Cavalcanti)

Profundamente
Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de
Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes e risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo.
Profundamente.

domingo, 13 de junho de 2010

Amor sem palavras...

Pintura de Ana Maria Oliveira
Ensinamento
Adélia Prado

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

domingo, 30 de maio de 2010

Eu: fases!


Lua adversa
Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

terça-feira, 18 de maio de 2010

Viver mais, amar mais...


Epígrafe
Eugênio de Castro

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...
Homem, que fazes tu? Para que tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...

terça-feira, 11 de maio de 2010

Às incertezas da vida...


Eu escrevi um poema triste
Mário Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apesar da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incertezas...

Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

terça-feira, 27 de abril de 2010

A felicidade ao nosso alcançe!


DA FELICIDADE
Mário Quintana

Quantas vezes a gente,em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão,por toda parte,os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

domingo, 11 de abril de 2010

Aniversário: vencer os caminhos tortos.


Soneto de Aniversário
Vinicius de Moraes

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece....
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Expressar amor é ser RIDÍCULO?!


Todas as Cartas de Amor são Ridículas
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Caso queira escutar esse poema recitado pela cantora e intérprete Maria Betância, é só clicar no link http://www.youtube.com/watch?v=jTSlw9L_uSE e boa audição!!!

terça-feira, 16 de março de 2010

Um amor inesquecível!

Imagem extraída de http://franciscolibanio.blogspot.com/2009_05_01_archive.html
O "adeus" de Teresa
Castro Alves

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos... E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...

E ela, corando, murmurou-me: "adeus".

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram-se tempos... sec'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei!... descansa!..."
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei... era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mulher...

Mulher no jardim, Monet (1867)
O chapéu violeta
Mário Quintana

Aos 3 anos:
Ela olha pra si mesma e vê uma rainha.
Aos 8 anos:
Ela olha para si e vê Cinderela.
Aos 15 anos:
Ela olha e vê uma freira horrorosa.
Aos 20 anos:
Ela olha e se vê muito gorda, muito magra,
muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado,
decide sair mas, vai sofrendo.
Aos 30 anos:
Ela olha pra si mesma e vê muito gorda,
muito magra, muito alta, muitobaixa, muito liso
muito encaracolado, mas decide que agora não tem
tempo pra consertar então vai sair assim mesmo.
Aos 40 anos:
Ela se olha e se vê muito gorda, muito magra,
muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado,
mas diz: pelo menos eu sou uma boa
pessoa e sai mesmo assim.
Aos 50 anos:
Ela olha pra si mesma e se vê como é.
Sai e vai pra onde ela bem entender.
Aos 60 anos:
Ela se olha e lembra de todas as pessoas
que não podem mais se olhar no
espelho. Sai de casa e conquista o mundo.
Aos 70 anos:
Ela olha para si e vê sabedoria, risos, habilidades,
sai para o mundo e aproveita a vida.
Aos 80 anos:
Ela não se incomoda mais em se olhar.
Põe simplesmente um chapéu violeta e vai se divertir com o mundo.
Talvez devêssemos por aquele chapéu violeta mais cedo!

domingo, 7 de março de 2010

Mulher...


Com licença poética
Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A necessidade de alcançar as estrelas!


Das utopias
Mário Quintana

Se as coisas são inatingiveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Mais uma vez Mário Quintana nos apresenta uma visão simples, porém grandiosa das experiências e desejos humanos. Precisamos sempre não nos esquecer de que é preciso ter sonhos, mesmo que aparentemente irrealizáveis. E mesmo inatingíveis, alguns de nossos sonhos, o que seria de nós se não os tivéssemos? Para que, então, viver, se não há coisas pelas quais lutamos incansavelmente?



Boa reflexão!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Fotografia in: http://eternoimortal.blogspot.com/2009/05/guru.html

Se
Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, Índia, 1865-1936, autor e poeta britânico)
Tradução de Guilherme de Almeida

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
de crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, engandao, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar o coração, nervos, músculos, tudo,
a dar sejao o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos poes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010


Canção
Cecília Meireles

Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.
Levou somente a palavra
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca niguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos também...

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A indiferença do olhar!

Imagem In: http://altohama.blogspot.com/2007_08_01_archive.html

Jardim interior
Mário Quintana

Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Entre amores e beijos!!!

O beijo, de Auguste Rodin (1840-1917)
As sem razões do amor
Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Nada melhor que começar o ano falando de um dos sentimentos humanos mais belos e desejados por todos, O AMOR. O amor que, como já expresso no próprio título do poema, tem razões e não tem razões para desejá-lo. Drummond, com essa ambiguidade proposital, faz-nos refletir sobre esse sentimento que nos envolve, que nos atrapalha, que nos confunde, mas ao mesmo tempo tão desejado.
Deixo para todos, também, a escultura do artista francês Auguste Rodin, que tão bem reflete uma das formas mais singelas e apaixonantes de expressar o amor: o beijo!