domingo, 20 de novembro de 2011

Um sonho!


Canção
Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor qu escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo,
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quando for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

domingo, 16 de outubro de 2011



berimbau de lua
Lau Siqueira

antes que tudo
fuja aos meus pés

vou caminhando


isento das alegrias
fúteis e das tristezas
dispensáveis

viajante do tempo

caminho como quem
sabe das bifurcações
e dos disfarces

com medo do que
não amedronta
mais

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Melhor sofrer do que nada viver...

Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
pois por elas não perde as esperanças
de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porque inda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desperzos e isenção
trazem o coração atormentado.
Luís Vaz de Camões

Mas triste quem se sente magoado
de erros em que não pode haver perdão
sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

sábado, 20 de agosto de 2011

Saudade...





Profundamente
Manuel Bandeira


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da note despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Por que adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônia Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos?
- Estão dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

terça-feira, 14 de junho de 2011

É preciso silêncio...

Mulher na janela - Salvador Dali



Para colher silêncio
há que suspender a palavra.
Se travada na garganta,
o sabor doce do sal
é mar desviado dos olhos.
Depois, se mente um riso
para povoar a boca
em desuso.
Bartolomeu Campos de Queirós

quarta-feira, 18 de maio de 2011

"Poesia sem pele", Lau Siqueira




Hoje, tive a honra de participar do lançamento do livro de poesias "Poesia sem pele", do poeta gaúcho, mas também paraibano de coração, Lau Siqueira. É desse livro que transcrevo aqui um de seus poemas, também postados em seu blog "Poesia sim". Deliciem-se:


Curupira
Lau Siqueira

o medo é um galope saindo das trevas
como quem foge não sabe de quê

o medo é um sol imenso no céu
e uma boca escancarada para a sede

o medo é a possibilidade de enfrentá-lo

sábado, 7 de maio de 2011

Igualdade é liberdade?

Adão Ventura



Negro forro


Adão Ventura





minha carta de alforria


não me deu fazendas,


nem dinheiro no banco,


nem bigodes retorcidos.





minha carta de alforria


costurou meus passos


aos corredores da noite


de minha pele.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Eu sou como eu sou


Le Cap d'Antibes - Monet


Cogito

Torquato Neto


eu sou como eu sou

pronome

pessoal intransferível

do homem que iniciei


eu sou como eu sou

agora

sem grandes segredos dantes

sem novos secretos dentes

neta hora


eu sou como eu sou

presente

desferrolhado indecente

feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou

vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim.

domingo, 27 de março de 2011

Um belo poema!

Escher
"olho muito tempo o corpo de um poema"

Ana Cristina Cesar


olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas

domingo, 13 de março de 2011

Tudo é mar!


Beira-mar
Cecília Meireles

Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias,
como os peixinhos nos rios...

Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para omar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar - e mais nada.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Os encontros!

Casa de Cora Coralina


Meu destino
Cora Coralina

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes -
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A poesia purifica a alma!


Se eu Fosse um Padre
Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A bela metalinguagem!


Emergência
Mário Quintana

Quem faz um poema abre uma janela.
respria, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O amor!


Saberás que não te amo e que te amo.
Porquanto de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade fria.

Eu te amo para começar a te amar,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de te amar nunca:
por isso mesmo é que ainda não te amo.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da ventura
e um incerto destino desditado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amor quando te amo.
(Pablo Neruda)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Êta vida injusta!



Aposentadoria do Mané Riachão
Patativa do Assaré

Seu moço, fique ciente
de tudo que eu vou contar.
sou um pobre penitente
nasci no dia do azar;
por capricho eu vim ao mundo
perto de um riacho fundo
no mais feio grutião.
E como ali fui nascido,
fiquei sendo conhecido
por Mané do Riachão.

Passei a vida penando
no mais cruel padecê,
como tratô trabaiando
pro felizardo comê.
a minha sorte é torcida,
pra melhorá minha vida
já rezei e fiz promessa,
mas isto tudo é tolice.
Uma cigana me disse
que eu nasci foi de travessa.

Sofrendo grande canseira
virei bola de bilhá.
Trabalhando na carreira
daqui pra ali e pra acolá,
fui um eterno criado
sempre fazendo mandado,
ajudando aos home rico.
Eu andei de grau em grau,
tal e qual o pica-pau
caçando broca em angico.

Sempre entrando pelo cano
e sem podê trabalhá,
com sessenta e sete ano
procurei me aposentá.
Fui batê lá no escritório,
porém de nada valeu.
Veja o que foi, cidadão,
que aquele tabelião
achou de falá pra eu.

Me dise aquele escrivão
franzindo o couro da testa:
- Seu Mané do Riachão,
estes seus papéis não presta.
Isto aqui não vale nada,
quem fez esta papelada
era um cara vagabundo.
Pra fazê seu aposento,
tem que trazê documento
lá do começo do mundo.

E me disse que só dava
pra fazê meu aposento
com coisa que eu só achava
no Antigo Testamento.
Eu que tava prezenteiro
mode recebê dinheiro,
me disse aquele escrivão
que precisava dos nome
e também dos sobrenome
de Eva e seu marido Adão.

E além da identidade
de Eva e seu marido Adão,
nome da universidade
onde estudou Salomão.
Com outroas coisa custosa,
bem custosa e cabulosa,
que neste mundo revela
a Escritura Sagrada:
quatro dente da queixada
que Sansão brigou com ela.

Com manobra e mais manobra
pra podê me aposentá,
levá o nome da cobra
que mandou Eva pecá.
E além de tanto fuxico,
o regristro e o currico
de Nabucodonosô,
dizê onde ele morreu,
onde foi que ele nasceu
e onde se batizô.

Veja moço, que novela,
veja que grande caipora
e a pió de todas ela
o sinhô vai vê agora.
Para que eu me aposentasse,
disse que também levasse
terra de cada cratera
dos vulcão do estrangeiro
e o nome do vaqueiro
que amansou a Besta Fera.

Escutei achando ruim
com a paciência fraca,
e ele oiando pra mim
com os óio de jararaca.
Disse: - A coisa aqui é braba
precisa que você saiba
que eu aqui sou o escrivão.
Ou essas coisa apresenta,
ou você não se aposenta,
Seu Mané do Riachão.

Veja, moço, o grande horrô,
sei que vou morrê depressa,
bem que a cigana falou
que eu nasci foi de travessa.
Cheio de necessidade,
vou vivê de caridade.
Uma esmola, cidadão!
Lhe peço no Santo nome,
não deixe morrê de fome,
o Mané do Riachão.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Um novo ano começa. E com ele...

Operários, de Tarsila do Amaral
Tecendo a manhã
João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.